...A missão duma vida (2ªparte) - Clique aqui para ver a 1ª parte
"Dos fracos não reza a história" e não reza mesmo. Nunca esta
frase fez tanto sentido como aquilo que se iria passar durante a semana durante
as buscas às restantes vítimas.
Segunda-feira, para nós, foi um dia calmo para descomprimir das emoções fortes
dum domingo cheio de ação e perigos mas com a sensação de missão cumprida ainda
muito presente. Reunimo-nos no sítio do costume depois do almoço para conversar
e colocar as ideias em ordem. Outra tripulação assumiu as buscas durante o dia
e entretanto já tinham recuperado um dos corpos junto ao comboio ficando a
faltar o revisor e o maquinista mas com a corrente forte do rio eram difíceis
senão impossíveis buscas ao longo do rio.
No dia seguinte e apenas com um elemento novo na
tripulação, recuperador salvador, arrancamos manhã cedo de Santa Comba Dão com
destino ao rio Tua para tentarmos encontrar as duas vitimas que faltavam porque
tinham cortado o caudal do rio numa barragem e era agora possível ter mais
visibilidade nas margens onde possivelmente o corpo estaria. De facto assim foi
e ainda durante a manhã o meu "olho de falcão" detecta um corpo
submerso numa margem encostado a umas pedras. Tratava-se do revisor do comboio.
Entramos em voo estacionário e através da operação de guincho recuperamos o
corpo e sem entrar no helicóptero foi colocado junto às equipas de resgate que
se encontravam na linha do comboio. Fizemos mais vários voos durante o dia mas
não foi possível avistar o corpo que faltava, o maquinista da composição.
Entretanto a meteorologia começou a se degradar e fomos desmobilizados com
regresso imediato a Santa Comba Dão. A viagem de regresso começou bem embora
com fraca visibilidade mas que com o passar do tempo foi piorando. Por razões
de segurança o João Lima optou por aterrarmos no parque de estacionamento dum
restaurante e esperamos que a meteorologia melhorasse para regressarmos à base.
Aterramos em segurança só que para nosso desgosto o restaurante estava
encerrado o que não impediu o João Lima de ir bater à porta. Fomos todos atrás
dele e ele bateu à porta. Surgiu um senhor muito admirado por ver um
helicóptero estacionado no local dos carros mas muito atencioso falou connosco
mas o melhor estava para vir, o senhor era gago e muito. O João Lima fazia
várias caretas para tentar perceber o que o senhor dizia e complicou-se ainda
mais quando olhava para nós e estávamos todos quase a rebentar de riso. Depois
de agradecer ao senhor voltou-se danado para nós porque em vez de o ajudarmos
estávamos todos no gozo mas ele próprio depois se desmanchou a rir e começou a
falar connosco a gaguejar. Por fim a meteorologia deu tréguas e entre risos,
gargalhadas e muito gaguejar lá fomos de regresso à base para mais um descanso
merecido.
No dia seguinte o helicóptero já não foi requisitado e
ficámos todos em modo de espera na base. Também as buscas desse dia não
permitiram encontrar a última vitima tendo sido suspensas durante a noite.
Voltámos a comparecer na base no outro dia pelas 8 da manhã mas continuávamos
em terra. Segundo informações que obtivemos as buscas estavam agora a ser
efectuadas junto às margens por mergulhadores dos bombeiros. Voltámos à boa
disposição do costume com cafezinhos e algumas anedotas com conversas da treta.
Subitamente somos interrompidos pelo telefone da base com um telefonema do CNOS
a pedir a saída urgente do HOTEL1 para o rio Tua porque tinha acabado de haver
um acidente com os mergulhadores dos bombeiros. Como estava tudo pronto a
descolagem foi ao minuto e à velocidade máxima prosseguimos para o local.
Já na aproximação e via rádio fomos informados que um cabo de aço que se
encontrava entre as duas margens e que permitia que os mergulhadores se
agarrassem para vistoriar as margens partiu e arrastou vários mergulhadores não
se sabendo qual a situação ou localização dos mesmos.
A opção passou por iniciarmos um voo rasante a subir o rio na esperança de os
encontramos rapidamente e assim foi. Numa zona em que o rio tinha poucas curvas
avistamos um mergulhador no meio do rio a ser arrastado mas já em sérias
dificuldades. Como o rio ali era muito apertado e não permitia rodar o
helicóptero o João Lima faz uma das manobras mais fantásticas a que já assisti
e que muitos poucos pilotos a conseguiriam executar. Passou por cima do
mergulhador e iniciou uma manobra de subida agressiva a sair do rio tipo
"stall turn" e depois desce para o rio mas já no sentido inverso e a
voar baixo já direito ao mergulhador mas agora a acompanhar a descida do rio.
Como um problema nunca vem só o rio uns metros à frente fazia uma curva de
quase 90º não permitindo o resgate e morte quase certa do mergulhador contra as
rochas. De imediato O João Lima manda o operador de guincho colocar o
recuperador fora do helicóptero e a descer visto só termos uma oportunidade ou
ele ia ter morte certa. Quando olhei pelo meu espelho nem queria acreditar,
tinha o recuperador a descer de cabeça para baixo e a parede cada vez mais
perto. De repente vejo o recuperador a conseguir agarrar pela cabeça o
mergulhador e a tira-lo da água e o João a travar o helicóptero porque mais uns
metros e tínhamos a parede.
Já dentro do helicóptero percebemos que o mergulhador
se encontrava inanimado tendo o recuperador iniciado manobras para o recuperar
enquanto voávamos para a estação de comboios do Tua onde estava o pessoal do
INEM. Quando aterramos já ele se encontrava consciente para nossa alegria tendo
sido levado para observação.
Enquanto estamos a deixar a vítima fomos informados de que ainda faltam
mergulhadores arrastados. Voltamos de imediato ao rio e sempre a subir acabamos
por avistar dois mergulhadores nas margens do rio. Um deitado inanimado numa
rocha e o outro junto dele em pânico e a chorar compulsivamente. Entramos em
estacionário e voltamos a descer o recuperador apenas com a mochila de
primeiros socorros. Neste momento passamos a espectadores numa guerra que o
recuperador faz entre a vida e a morte a tentar reanimar o mergulhador. A
determinada altura pede a maca SAR, coloca com a ajuda do outro mergulhador a
vitima na maca e é resgatado para o helicóptero. Já dentro do helicóptero continua
com as manobras de reanimação e para alegria de todos nós ele abre os olhos e
tosse embora muito debilitado. Voltamos à estação e entregamos a vítima ao
INEM. A nossa adrenalina estava no máximo num misto de alegria e alegria por
eles estarem bem. Acabamos por ficar por ali e fomos visitar à tenda os dois
mergulhadores que curiosamente estavam revoltados connosco "porque razão
não estávamos ali para os socorrer em vez de estarmos estacionados em Santa
Comba Dão". Explicamos que como eles cumpríamos ordens e após tudo
esclarecido ficámos todos amigos.
Após mais um dia, e que dia, voltamos à base e para as nossas famílias que
segundo nós é sempre a parte mais importante da missão.
Chega então o último dia de buscas, o 7º dia, e era o
tudo por tudo. Faltava encontrar o corpo do maquinista para que a missão
ficasse completa e a família pudesse fazer o funeral e o luto. Após vários voos
efectuados e sem avistar nada ficamos à espera do fim do dia para regressar.
Antes do regresso à base decidimos fazer um último voo a subir o rio até ao
local do acidente e depois descer e regressar a casa. Foi a decisão do dia. O
João Lima voou o helicóptero até ao local do acidente e passou-me os comandos
para eu descer o rio e voar de regresso a casa. Após pouco tempo de ter
iniciado a descida do rio pareceu-me ver algo estranho na água. Parei o
helicóptero e recuei um pouco. Pedi ao operador de guincho que visse o que é
que estava encostado na margem no meio das pedras. A euforia instalou-se de
imediato na tripulação, era o corpo do maquinista e o que eu tinha visto era
parte do tronco e o cinto. Iniciamos de imediato a recuperação do corpo da água
e sem entrar dento do helicóptero foi colocado na linha do comboio onde já se
encontravam várias pessoas pois tínhamos avisado via rádio que tínhamos
localizado o corpo da última vítima.
O sentimento de missão totalmente cumprida era agora um misto de alegria,
tristeza pela morte das pessoas mas principalmente de alívio.
O Dr. Jorge Gomes, na altura
Governador Civil, decidiu reunir todos os elementos de proteção civil na
estação do Tua para um agradecimento público pelo empenho de todos. A chuva
entretanto começou a cair com alguma intensidade mas ninguém arredou pé. Os
únicos que estavam abrigados da chuva era a tripulação do HOTEL1. Nisto o Dr.
Jorge Gomes pede a que um elemento da tripulação vá para o palanque representar
o meio aéreo. Nisto sinto um empurrão nas costas e sem que pudesse evitar
estava no meio da estação. Tinha sido o João Lima a empurrar-me e ainda o ouvi
dizer: "Vai lá Joãozinho que tu é que és jornalista e tens jeito para
isso". Acabei por ficar também no palanque a dividir a chuva com os
restantes mas sempre com o apoio da tripulação do HOTEL1 que não paravam de
fazer sinais de OK e riam desalmadamente.
A chuva acabou por atrasar o regresso à base tendo nós todos optado por jantar
umas belas enguias num restaurante junto à estação com o dono do restaurante
sem sair de junto de nós a contar histórias de pessoas que tinham morrido
trucidadas pelo comboio ao longo dos anos.
Finalmente e já de noite iniciamos o regresso à base mas tivemos de divergir
para o aeroporto do Porto para reabastecer o helicóptero pois o tempo extra
para a recuperação e o mau tempo exigia que por razões de segurança tivéssemos
um alternante caso não conseguíssemos aterrar em Santa Comba Dão.
O comandante João Lima era um piloto muito acima da média e um homem com o
"H" muito grande. Até hoje continuo a acreditar que só ele era o
único comandante capaz de efetuar uma missão daquelas. Estejas onde estiveres
"Joãozinho" eu sei que continuas a olhar por nós.